Espectral | Microconto | RPG Thirsty Sword Lesbians

Rafael Cruz
4 min readSep 26, 2021

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Cuidar da ala médica não é fácil, sabe? Especialmente em tempos de guerra.

Faz tanto tempo que eu já nem saberia mais dizer exatamente quando tudo começou, mas o que a gente chama hoje de ‘resistência’ já teve diversos nomes. Aliança, Independentes, Apagadores, Resgatadores. Chame como quiser, mas a ideia é a mesma: esse maldito governo corrupto e preconceituoso comanda essas terras desde sempre, e no processo garante que o povo continue na ignorância para que ele se mantenha no poder.

Apesar da gente estar combatendo um governo teocrático fanático, foi justamente a fé que me fez deslizar para os hospitais e enfermarias. Naquela época esse rosto possuía bem menos rugas do que agora. Eu participava de um grupo desses de insurreição e… Isso. Insurgentes. Adiciona esse pra sua lista, querida. Bom, eu participava desse grupo e estávamos numa missão de reconhecimento de um antigo prédio secreto que era utilizado como arsenal. Como você bem sabe, aqui em Vera Cruz nós temos todo o tipo de tecnologia “atual”, mas ainda assim ela parece ser extremamente velha e mal cuidada, né?

O que se sabe é que o rei sempre teve acesso à tecnologia de ponta, resultado de vários tratados com os reinos e países vizinhos. Especialmente aquele outro lá, Heteronórmia. Em várias dessas missões de reconhecimento eu era a primeira a avançar justamente porque a minha cadeira de propulsão não toca o chão e tem menos chance de ativar os sensores. Pois bem: ao liderar o grupo avançando pelo prédio, eu comecei a ouvir alguns barulhos vindos de dentro de uma das paredes. Pelos nossos cálculos, não deveria haver nada do outro lado, então os mais covardes de nós já começaram a reclamar e solicitar para cancelar a missão e voltar para base com informações incompleta.

Mas você sabe disso: informação incompleta é ‘informação errada’ com outro nome. Seguimos.

Conforme o resto do grupo se espalhava escaneando e hackeando o lugar, me concentrei naquela parede, tentando analisar e decifrar as leituras completamente absurdas que o visor da minha cadeira indicava. É… hoje eu não saberia explicar o que aquilo significava. Na época eu achei que era algum tipo de energia e simplesmente torci para que não fosse nociva ou qualquer coisa do tipo. Até aí, tudo bem.

Resolvi tirar as minhas luvas e tocar na parede. Disso eu sei que nunca vou esquecer: ela parecia estar viva. Vibrando, respirando, pensando, computando, seja lá o que aquilo era, definitivamente era um organismo vivo. “Era”, eu disse. Quando toquei naquela parede, senti todo o meu corpo arrepiar e minha cadeira desligou na hora. O barulho da queda não foi tão alto porque ela possui amortecedores para situações sem energia, mas ainda assim, foi assustador.

arte por Herm

Precisei abrir o compartimento dos bastões de energia manualmente e mesmo eles estavam descarregados. Eram só dois bastões de aço super leves, mas teriam que bastar caso alguma coisa resolvesse partir para cima de mim.

E foi isso: fiquei lá plantada na cadeira, de frente para a parede, enquanto segurava os bastões utilizando todo o treinamento que eu sabia. Eu tenho certeza absoluta que durou quase uma hora, mas o meu esquadrão me disse que eu fiquei ali por apenas cinco segundos.

Durante aquele tempo, eu ouvi… senti, na verdade… uma voz falando comigo. Ela agradecia por eu estar lá. E pelo que eu havia feito. Mas eu não havia feito nada, sabe? Nada ainda. Eu sentia essa voz como se falasse diretamente dentro da minha cabeça, dentro dos meus ossos. Esperei e esperei, e no fim toquei com um dos bastões a parede.

Minha cadeira de propulsão se energizou novamente e eu voltei a flutuar alguns centímetros do chão. O outro bastão também voltou a funcionar, mas aquele que tocou a parede segue apagado até hoje. Mas ele me traz paz, de alguma forma. Não sei explicar. Sim, esse aqui. Quer segurar? Olha só como ele é leve, tem o balanço perfeito.

Normalmente, quando um dos bastões está descarregado e eu os uno, a energia é redistribuída. Mas, como eu disse, esse aí nunca mais ligou. Estranho né?

Ah, os hospitais? Depois dessa missão, eu passei a sentir a voz de vez em quando, e sempre quando eu estava casualmente cuidando de algum ferido de guerra. Eu sinto a voz, mas ela não exatamente me diz nada. Mas eu gosto da companhia, então fiz da cura o meu ofício. Sei lá quantas vidas eu salvei, mas se a pessoa consegue sair daqui melhor do que entrou, é uma vitória, né? E de quebra a voz me faz companhia.

Ter companhia é bom. Especialmente em tempos de guerra.

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