Parceria | Microconto | RPG Ironsworn: Starforged

Rafael Cruz
5 min readOct 1, 2021

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Para quem já derrotou um mamute e uma abominação, um lagarto parece pouca coisa, né? Você não faz ideia.

Mas, antes disso. Conforme o tempo tem passado, as minhas lembranças ficam cada vez mais estranhas. Eu sei do que aconteceu e lembro muitas vezes como aconteceu. Mas a ordem… às vezes não parece bater. A cabeça já não estava das melhores na vila, mas depois de aparecer nesse lugar estranho, então…

A nave. Eu encontrei o que eu acreditei ser um tipo de moradia. O tamanho lembrava a casa do Balthazar, mas a arquitetura… não fazia sentido. Muito tempo depois eu viria a entender que aquilo é algum tipo de veículo que serve para voar pelo céu. E para além dele, através dos feitos das pessoas heroicas da vila, ou “estrelas”, como eu iria ser apresentado mais tarde.

A nave-casa parecia abandonada. Pelo menos, se havia alguém lá dentro não se apresentou. Não consegui abrir a porta, mas dei meu jeito para entrar por uma janela para me abrigar contra o frio. Estava muito frio. Quando se tem fome, qualquer coisa que tenha um cheiro que não te faz vomitar pode ser comida. Então eu comi algumas coisas que encontrei lá dentro. Me alimentou… até que eu precisei colocar tudo para fora. Se aquilo era a comida daquele povo, eles provavelmente eram uma sociedade doente.

Alguns dias depois eu ainda não havia visto nenhuma outra pessoa naquele deserto. Talvez aquele fosse o lugar para onde aqueles que morrem com arrependimentos vão?

Talvez eu não tenha corrigido todos os meus erros, afinal.

Quando eu começo a divagar sobre essas lembranças, o sorriso do Alceu sempre me ilumina. Ele tinha aquele sorriso fácil, que amolecia até mesmo a pessoa mais carrancuda. O que muitos chamavam de ingenuidade, ele tratava como esperança. Confiança. Fé.

Fé naquele sentido mais clássico, sabe? Eu nunca tive muita crença nos deuses. Eles existem para lá e eu caço minhas presas e protejo a vila para cá. Mas o Alceu não. Ele sabia conversar com os deuses. Dos poucos que faziam isso na vila, sempre estavam com os olhares perdidos, murmurando sozinhos pelos cantos. Mas o meu amado sempre possuía um sorriso no rosto e falava com a terra e com alimentos que plantava. Sinto sua falta, D’Arado.

Eu acordei do sonho com uma velha tentando roubar o meu arco.

Pensí que vucê tinha morto”, eu não entendi bem o que ela me disse, mas acho que peguei a ideia.

Isso é meu”, eu respondi segurando o arco com força na outra extremidade. Minha outra mão avançou para onde havia uma flecha em bom estado. Acho que ela entendeu meu português quando parou de avançar.

Descul vucê novidade aquí?”, ela soltou o arco e retirou a proteção do rosto. Eu não respondi. Olhei no fundo dos olhos dela como quem não tem nada a perder.

Era verdade.

Infelizmente.

Comides, aquí. Comides”, ela me entregou um tipo de embrulho que cheirava bem. Cheirava tão bem que minha barriga se manifestou. Engoli o orgulho antes de engolir aquela benfeitoria da estranha. Parecia que eu não comia há eras.

Raven”, ela disse, seja lá o que for que isso signifique. Apontou para si mesma e repetiu: “Raven”. Fez o som de um pássaro de mau agouro. Na vila, só alguns anciãos e batedores loucos dominavam esses pássaros. Talvez ela tivesse um?

Rêê-ivém” eu tentei repetir. Som estúpido, não fazia sentido. Ela riu.

Passamos um bom tempo em uma comunicação precária, mas chegando em algum entendimento. Talvez por causa do nome estranho, ela era alguém bastante esperta. Não peguei todos os detalhes, mas ela pareceu querer trocar o meu arco por várias coisas. Ele parecia valioso para ela. E quando eu percebi isso, ela desistiu de barganhar.

Da forma que pude, contei quem eu era. Não contei sobre a vila, mas contei que não era dali. “E você foi largado aqui solo nesse infer gelato?”, ela me perguntou e a essa hora eu já conseguia entender um pouco melhor. Perguntei sobre a vila, mas ela não deve ter entendido. Falei o nome de pessoas conhecidas, mas sem sucesso. Comentei sobre ferro negro e isso ela talvez conhecesse. Me olhou de cima a baixo.

Não estávamos nem perto da minha vila, Rêêivem disse. “Redenção”, ela completou, “é o povoado mais próximo. Talvez alguém lá conheça de onde você veio”. Tão logo ela terminou de dizer, eu ajeitei o arco e me preparei para sair, mas fui impedido. “Vucê tá maluco? Esse deserto vai te comer vivo! Não aguentaria nem uma noite andando por essa terra congelada”.

Em silêncio, eu analisei o que ela disse, olhei pela janela e o rosto dela se interpôs entre mim e a visão. “Vucê não vai sair agora. Vai acabar morrendo. E além disso, vem uma tempestade em breve. Vai ser melhor a gente cobrir essa janela e esperar passar”. Eu não a conheço, não confio nela. Passei a andar com o arco sempre em mãos, mas ela não se importou. Nem atacou.

Rêêivem perguntou o nome da minha vila. Nunca achei que vilas tivessem nomes. Sempre foi “minha vila”, “meu povo”. Isso me deu o que pensar.

A tempestade veio.

Durou uma semana.

Ao final, ela subiu no meu cavalo sem cabeça e começou a me guiar na dição de Redenção. “Hoverbike”, como ela chama o aparelho. Perdi o controle várias vezes, mas não é tão diferente de um cavalo selvagem.

Você teria gostado de conhecer a Raven, Alceu.

Arte do jovem Lopo por CelticBotan

Lopo D’Caça é agora também um personagem de Ironsworn: Starforged. Após terminar sua jornada, a vida lhe pregou mais uma peça e impediu o seu descanso, colocando em um lugar onde ele precisa ao mesmo tempo se valer e se esquecer de tudo o que já aprendeu. Juramentou seu voto no ferro, em mais uma jornada para proteger voltar vila e para a filha que ama. Embora ainda seja um caçador, hoje ele é mais do que isso.

Ele torce para que a vila ainda esteja lá, seja lá onde ou quando for.

Você encontra sua playlist aqui.

Os textos estão sendo baseados no jogo solo utilizando este link.

As sessões da campanha Ironsworn — Silêncio estão aqui.

Se quiser saber mais sobre o Lopo antes de tudo isso, os outros contos de Ironsworn estão aqui.

Já os o Lopo em Ironsworn: Starforged pode ser encontrado aqui.

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